2.9.07

Bosco Sobreira

Quadro

Pude então dedicar-me ao idiota prazer de engolir e soltar fumaça. Enquanto fumava, assistia à rotina do hospital estender-se diante de meus sentidos. Vozes abafadas, murmúrios, gemidos, gritos, lamentação; gente apressada, expressões carregadas, densas, sombrias, e o cheiro, o cheiro do éter, das emanações dos corpos, das excreções humanas misturam-se ao cheiro característico da doença, penetra pelas narinas e lá permanece, grudado como uma ostra podre, refratário às águas, aos perfumes. O cheiro dura dias; depois de algum tempo não é mais o cheiro, é a memória do cheiro, o que dá na mesmíssima coisa.
Tudo isso sempre me incomodou. Desde os primeiros dias de faculdade. Como eram diferentes meus colegas! Enquanto metiam-se todos em plantões intermináveis, remexendo em tudo que era canto, dormindo sobre macas imundas, comendo sanduíches em meio a fezes e pus, eu procurava me esquivar o quanto fosse possível, cumprindo apenas o mínimo do mínimo exigido pelo currículo ordinário. Nunca me alvorocei na procura de estágios, nunca me meti na briga de foice por uma vaga em hospitais respeitáveis ou nos açougues humanos em que se transformaram algumas clínicas de periferia. Talvez, talvez não, certamente por isso pensei em me tornar sanitarista. À época, procurei dar um tom de grandiosidade a esse gesto, como se gesto de grandeza houvesse; magnânima renúncia, desmedido sacrifício, tudo em nome de minhas convicções políticas. Não queria servir à burguesia odiada; não me imaginava sujando as mãos em consultórios atapetados e bem-cheirosos, protegido da miséria do povo, a doença maior. Queria servir a meu povo, preparar-lhes o corpo e a alma para que sadios pudessem servir à causa revolucionária.
Um tio materno, quando soube de minha escolha e suas razões, não se conteve:
“Muito bem, Fulano! Vai tratar das lombrigas dessa cambada, engordá-los, pra depois enfiá-los como porcos cevados na revolução? Muito certo. Pelo menos morrem todos gozando da mais perfeita saúde…”
Não nego que me senti agredido. No momento, apenas sorri. Mas, verdade seja dita, por algum tempo a lembrança foi ganhando pele e quase vira mágoa. Tolice!
Brigas bestas, rancores tolos, mágoas à-toa, tudo por uma escolha que eu, sem que soubesse, fingia acreditar virtuosa.
O cigarro ia assim pela metade, e eu fiquei a conceber tolices:
Melhor seria que o estudo dos chamados sublimes valores humanos fosse excluído definitivamente da Ética, e que as virtudes, exiladas para sempre de seus ricos castelos e despojadas de suas pompas e privilégios, ficassem assim como vísceras abertas ao tempo e aos tapurus. Talvez a Ética, essa ética de paramentos e biscuits, nem devesse existir, por dispensável. Superfluidade de bacharéis e enfastiados. Pareceu-me, naquele momento, que as virtudes seriam melhor compreendidas à luz da Geometria Analítica, visto que, a meu parco juízo, tudo não passa de uma simples questão de ângulos de observação. Um ato, visto de um plano em dada angulação, é uma virtude; enviesando-se o plano, o mesmo ato passa a ser capitulado no rol dos mais ignominiosos defeitos. Não é assim? O mais elevado altruísmo pode esconder o mais desprezível egoísmo; um sujeito humílimo não é por vezes profundamente orgulhoso de sua humildade?
O cigarro terminou. Atirei a guimba fora, assustando dois calangos que se repastavam nas ramagens secas. Um deles perdeu-se dos companheiros e disparou em minha direção. A certa altura, estacou abruptamente e ficou me espiando. Mas logo se cansaria dessa monotonia e saiu balançando energicamente a cabeça. Calangueando. Lembrei-me da enfermeira-chefe.
No final do corredor, dois sujeitos da limpeza jogavam dama nos ladrilhos recém lustrados; tampinhas de garrafa e sementes eram pedras. Uma enfermeira gorda e bicuda ausentava-se do mundo, movendo graciosamente as agulhas do seu crochê. Um doente velho, seco e verde como um louva-a-deus, removia a terra do jardim. Nostalgia do sertão.
O relógio da Basílica disparou os sinos por dez vezes. Decidi ganhar a rua.

©Bosco Sobreira


Sem comentários:

Minho actual tv