30.3.07

Nascido tarde

Quando nasci tinha trinta e nove anos de idade. Poesia é o nome da minha mãe que me teve numa idade avançada. Como sabem, em idades avançadas não se devia ter filhos porque se corre o risco de malformações nos fetos.
A minha mãe foi avisada pelos médicos, mesmo assim correu o risco e eu nasci.Agora tenho mais dois anos.
Quando passeio no jardim escuto as pombas que param para beber no lago do livro de histórias que leem, enquanto eu me escondo dos meus vizinhos que atiram pedras de papel branco, a mando das mães.
Escondo-me porque nasci tarde, com trinta e nove anos, e sinto vergonha dos outros que nasceram antes de mim.
Os pedúnculos das flores que tenho pelo corpo nasceram ocos. Um dia, cheia de curiosidade, quis saber se os das árvores também seriam iguais. Foi quando me acusaram de ter cortado as veias às árvores do parque e elas morreram. Tentei explicar-lhes que só as queria ver como eram por dentro, e depois ia cozê-las com linhas de costura da minha mãe. Mas ninguém me entendeu e consideraram o acto como um defeito de ter nascido tarde. Agora escondo-me por baixo da capa do livro, cheia de ervas, e fico ali até à noite quando sigo as estrelas dos lençóis da minha cama.
Também não poderei frequentar as escolas porque tenho idade avançada.A minha mãe ralha-me por eu ter nascido tarde mas eu não tenho culpa e ela sabe.Um dia tentei agradar-lhe e arranquei uma flor do meu corpo e dei-a para ela ficar feliz, mas ela pisou-a com o pé.
Os médicos dizem que não tenho cura, serei assim toda a vida: o ter nascido tarde.
Um Médico escreveu à minha mãe que eu podia fazer um tratamento intensivo para aprender a fazer poesia, que assim ia aliviar as minhas dores. Disse à minha mãe para me levar a uma clínica de livros e de leituras para fazer fisioterapia aos músculos das minhas flores; ao mesmo tempo que lia, levava choques eléctricos nos olhos e raios infra – vermelhos, por baixo da pele, no sangue.
Nunca mais fui ao tratamento! Mentia à minha mãe e fugia para o mar. Atirava areias à água com as gaivotas. Um dia a minha mãe desconfiou que não fazia os tratamentos e bateu-me, aqui nas costas, com uma pena, onde tenho a marca nas costelas.
Gostava de ter outra mãe que não fosse tão má.
Esta, quando mamo nos bicos das suas letras. Diz que já não tenho idade para mamar.Ela tem razão mas eu não tenho culpa de ter nascido tarde. Com trinta e nove anos tenho mais fome de cores e imagens. É por isso que lhe trinco os bicos, para ir buscar o que ela tem dentro dela. Sei que lhe dói quando faço isso porque ela grita e não me dá mais.
Gostaria de ter nascido como os outros poetas, com sete ou com nove anos de idade, não mais nem menos.
A minha mãe não teve culpa de eu ter nascido tarde. Foi a bruxa que vive no monte, na casa dos partos que adormeceu durante trinta e nove anos. A minha mãe não queria acordá-la mas teve que o fazer porque já não podia estar grávida, mais tempo, porque o mar se soltou rebentado pelas pernas abaixo.
Foi por isso que eu só nasci aos trinta e nove anos.
Ana Maria Soares da Costa
30 de Março de 2007


quadro

16 comentários:

Manuel Veiga disse...

excelente o teu texto... poético!

atrevo a dizer que nascente na data certa para a Poesia. em plenitude de Mulher!...

gostei muito. beijos

Daniel Aladiah disse...

Nunca é tarde para escrever bem... olha o Saramago.
Um beijo
Daniel

Anónimo disse...

Antes tarde do que nunca, costumamos dizer. Além do mais, nascer para a poesia não tem época, não tem idade. Um abraço.

Anónimo disse...

Que beleza de texto, minha querida amiga!
Esse é um daqueles que precisamos degustar palavra a palavra. Belíssimo!
Um beijo afetuoso!

Iara Maria Carvalho disse...

nascida de poesia, um parto poético dos bons...linhas cheias, barriga cheia, explodindo ternura e vento aos dezoito cantos do céu!

te adoro menina! e sou sua irmã em poesia...

jinhos...

david santos disse...

Olá, Ana Maria!
Venho cá felicitar-te pelo teu trabalho, que é espectacular. E agrader-te por seres uma MULHER das que não se calam.
Parabéns.

José Faria disse...

Nunca é tarde para nascer!
Tal como eu nasci hoje aqui no seu agradável e bem organizado Blogger!
Gostei muito e, se não se importa voltarei, com mais tempo para poder enriquecer os seus contos, ditos e poesia com os meus possíveis pareceres!

Parabéns!

José Faria

Anónimo disse...

A minha mãe também não teve culpa pelo meu nascimento...Assim são os que tem olhos de cristal .
obrigado pelas palavras legais, eu nunca vou deixar de começar a semana devorando teus textos
beijos do Brasil
até sempre

Charlie disse...

Querida amiga. Nascemos sempre a partir do Ano Zero. Mas nem todos os anos tem a mesma quantidade de dias. O teu teve mais do que catorze mil!
E porquê? Nem todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo, como disse Paracelso, e só o tempo e sol as amadurece ao gosto dos paladares mais requintados.
Bem vinda ao mundo dos que te esperaram...

Zé Miguel Gomes disse...

E vamos sempre a tempo de nascermos, não?

Fica bem,
Miguel

Amaral disse...

Mensagem curta porque, por enquanto, não tenho Net!
Uma Páscoa santa e feliz!
Uma chuva temperada de coisas boas para a tua vida!

Anónimo disse...

Uma Boa Páscoa é o meu desejo! Saudações fraternas.

lena disse...

Ana, fiquei sem palavras

és poesia sim!


excelente texto, muito bem este parto poético

gostava de nascer assim. tarde mas bem


adorei ler-te doce menina

um abraço meu, cheio de carinho

beijos para ti, muitos, doce Poeta

lena

Anónimo disse...

Oi querida!

Passei por aqui para conhecer o teu cantinho: está linkado a minha página!
Quanto ao texto, tu já sabes, adorei!
beijos,
Cármen Neves.

Isa e Luis disse...

Olá menina Poeta,

Lindo! lindo este nascer poético.

Deleito-me no teu manto de palavras,onde nasce a Poetisa.


Muitos beijinhos

Isa

gdec - Geraldes de Carvalho disse...

Diz que nasceu tarde. E como cresceu tanto em tão pouco tempo ?
Não terão mais razão para queixar-se os que nasceram cedo, talvez de mais, como eu ?

gdec

Minho actual tv