19.9.10

Palavras para o ar

http://aventuralondrina.blogspot.com/2010/09/ferias-em-imagens-as-flores-da-drosa.html

Mãe,
Porque meteste dentro de mim estas coisas: o fígado, pulmões, tripas, coração, sangue, enfim… carne? Estas coisas não falam comigo e obrigam-me a andar com elas. Ainda para mais, tu dizes que não devo andar com desconhecidos. Então porque me puseste um corpo que pouco fala comigo, quase não o conheço e há coisas que nunca irei ver?
Mãe, quando me puseste uma alma nos olhos, lembraste-te de verificar se estava em condições, não te enganaste? Como vês tão mal… podes ter-te enganado.
Mãe sabes se a alma também tem coisas dentro dela, daquelas iguais às minhas: fígado, pulmões, tripas, coração, sangue, enfim carne… enfim, dúvidas?!
Mãe, tudo o que meteste dentro de mim, em saquinhos brancos de linho: uns, continuam pendurados nas costelas; outros, pousados no ventre. Perto destes, há uma ameaça de roubo. Hoje em dia há ladrões para tudo. Então Mãe, os médicos querem alguns dos meus sacos, para examinarem o seu conteúdo. Insisto que tudo que me deste é meu e não o devo dar nunca. Mas Mãe não me avisaste que havia contra indicações dentro de alguns sacos e outros vieram vazios, sem nada, como ovos chocos. Como sabes, confundes as coisas e deverias ter pedido ajuda, quando colocaste os sacos dentro de mim quando nasci, devia ter sido antes do parto, mas esqueceste-te e agora nada trago para passar à minha geração. Os médicos querem-me analisar, tentar saber o motivo do engano.
Penso que é tudo um disfarce por parte deles, o que eles querem é os sacos de linho pendurados nas minhas costelas, porque alguns mexem por dentro e, no ventre, há um grande ovo, onde mora uma tecedeira parecida contigo, mas já é tão velha que as forças são poucas para fazer esforços e sair do cómodo lugar. Por isso, ladrões não me roubem o ventre!
Mãe, acaba os ovos que começaste a fazer para mim, quando era jovem e não acabaste ainda, porque vês mal e és analfabeta, não consegues ler as contra indicações que trazia dentro do frágil corpo vazio. Apesar das novas oportunidades, o que sabes não é suficiente para impedires que me roubem os sacos, com a saúde e minha juventude.



ana maria costa
2010

2 comentários:

Anónimo disse...

uau ! ...

Eliana Mora [El] disse...


Não sei se digo AI! ou se me calo, creio que ambas as reações seriam completamente cabíveis em mim, agora, ao sentir teu poema.

Nem devo dizer muito, porque tua escrita já conheço, mas o espanto me caberá [sempre]!

beijos, ó amiga poeta.

El

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