29.11.06

Fala-me de lágrimas

Fotografia: Karmel




Hoje, ligo-lhe do telefone amarelo cheio de cuspo de letras da boca e hálito de quem tanto fala. procuro –a sedenta de novidades porque sei que daquela sua fonte de charcos de águas escondidas nas sombras tem aberturas na língua.

É por isso que lhe ligo!

A Maria da Conceição, é uma moça casadoira que vive por trás das cortinas, tem consigo constantemente o seu telemóvel vermelho de luzes azuis intermitentes, não usa outras máquinas para publicar as suas notícias processa-as interiormente em estranhos maquinismos de usos de carne como ficheiros e arquivos, pulsos de ondas acústicas e uma agulha que pica cada letra e liberta da cor a tinta para a palavra.

Maria tem o coração embrulhado num jornal _Aquele que quero ler, hoje.

Maria lembra-me uma bailarina com olhos doces de cabelo repuxado e amarrado na música de piano que zomba do tempo e todo o tempo é um arrepio quando falo com ela.

Hoje, fala-me de lágrimas -digo-lhe!

Pergunto como está vestida, ela não responde logo, primeiro respira fundo como se algo muito atrasado saltasse dos seus arquivos secretos aqueles que nunca se leram a ninguém! E finalmente decide dizer que está vestida de branco como quando tinha 9 anos e continua sôfrega com voz de nevoeiro e nas pausas de chuva começa a falar da sua infância.
Pelo tema que escolheu para me contar vou ter tempo para limpar as manchas antigas e encardidas do meu telefone.
Não preciso do bloco branco e de canetas para gravar as notícias que vou ouvir de Maria, limito-me a ligar o vídeo e as imagens mudam conforme o que ouço; sem ritmos certos, os meus olhos seguem atentos nos espaços castanhos que, por vezes, param de espanto ou abrem-se como a uma grande boca.

-Fui violada quando tinha 9 anos - disse ela - dormia num quarto com as minhas irmãs mais velhas. mais tarde contaram-me que também elas tiveram a minha idade e os mesmos pesadelos.

-não me faças muitas perguntas, por favor - disse docemente Maria quando me mexi na outra linha.

-julgava ser assim em todos os lares _ depois de uma breve pausa, continua_ sítios, casas, ou como os animais que costumava ver a brincar e a cheirarem-se em liberdade, a copularem nos campo verde dos fundos da minha casa como os gatos ou como os leões na selva_ eu pensava que a natureza era toda igual só mais tarde soube que não!

Mais uma vez Maria parou de falar!

Aproveito para verificar a bateria do vídeo que agora rola em silêncio a fita de um filme inédito escrito à muitos anos nas paredes do passado.

Com curiosidade de saber o resto do filme e, na demora de Maria que, entretanto, parecia ter tapado o bocal , enrolo os dedos nos caracóis da linha do meu telefone imaginando puxar a voz no telemóvel de Maria.

O meu silêncio espreita a sua voz que não tardou em aparecer com vestígios de ranho mas mais recomposta e não fosse ela uma boa actriz e, como tal, arranja-se ao seu papel e entra em cena..


Lentamente e baixinho à terra o som surge desenvolvendo a notícia.

Um dia à noite quando a madrugada beija as árvores e os mochos piam as horas. A puberdade acorda no quarto ao lado, sorrateira e bandida, avança pelo pequeno corredor que separa as diferentes naturezas e passo a passo, flutuam sonhos descalços debaixo dos meus cobertores só os consigo ver pela frincha da persiana onde passa a chama da lua com os sonhos predadores que tocam o meu sexo .

Maria faz outra pausa. Sento-me na cadeira acolchoada onde me arranjo à melhor posição e trinco pipocas dos segundos.
Esperando o final do intervalo, bebo Porto velho no copo da paciência.


Antes -continua Maria - sonhara com fadas azuis sentadas junto aos contentes rios, apanhavam flores para encher as minhas almofadas da cama e eu dormia com os cheiros de rosas sem espinhos.

Antes _eu escovara o cabelo comprido e pretos da minha boneca Úrsula com pentes de olhos.

Antes eu não reparara que por baixo da roupa curta e branca de uma bailarina ouvia-se um corpo, um fruto de pouca pelagem negra com dois gomos vermelhos _ ela era uma menina!

Guardava a minha boneca numa caixinha que pensara ser mágica, porque, de vez em quando, quando eu a abria, ouvia uma música de piano, tão linda que me fazia rodopiar.

Mais um silêncio da Maria mais um arranjo na cadeira e mais uma golada de Porto!

Retoma a voz ao telemóvel fervente e canceroso.

Naquela noite, da caixa de música, em vez da Úrsula , sai um feiticeiro muito feio e despido de batas de meias luas, adorna a cabeça com um chapéu bicudo e cheio de estrelas que reluzem como os seus olhos maléficos. Ele, sem dar gargalhadas, calado no sussurro, devagar acaricia a sua varinha mágica entesada,, para cima e para baixo, à medida que a sua mão aperta os gemidos aos astros do quarto. Tem ao mesmo tempo, no sexo do meu triste sonho a outra mão, com dedos de bruxo nos meus gomos vermelhos , são abertos os portões do pequeno buraco.

grito NÃO.

Durmo ou estou acordada?

Desligo o telefone!

Respiro e penso!

- Ninguém conta histórias como a Maria Conceição.


©Ana Mª Costa

24 de Novembro 2006

colo comentários feitos pelos meus amigos da lista "Amantedasleituras" - Carlos luanda e Alexandra Oliveira, a este texto.

Suspira o orvalho, gotas de segredos

nas noites do teu corpo.

Do fundo do sonho, um céu em rios de aguas doces,

corre por entre os dedos

despertando os vermelhos da madrugada

Carlos Luanda

Alexandra Oliveira diz:

(...)é um dos textos mais bem escritos, mais plenos, mais sentidos, que tenho tido a honra de ler nos últimos tempos.

jinhos para ambos!

Ana

6 comentários:

Anónimo disse...

Ora agora, sim!
Não vou dizer que o anterior era feio porque era... horrível.
Não fora o conteúdo e seria de fugir!
Agora, sim, ao conteúdo junta-se uma carinha laroca, muita lindoca.

Anónimo disse...

Ana,
Não conheci o antigo template...então sobre esta mudança não posso opniar, mas com certeza adorei este espaçõ. Posso colocar um link para ele no meu blog?
Beijos
Andréa

Francisco Coimbra disse...

Se as "primeiras impressões" são as mais importantes…, acabo de importar as primeirissímas! Virei ler com mais atenção, mas deixo a_braços e mãos em letras desejando Muita Poesia e dando Parabéns. Quanto às impressões, impressionantes :) Bjs

Poesia Portuguesa disse...

Um texto impressionante!
Penalizo-me pela demora em visitar-te. Mas o tempo é tão pouco e tão curto! Voltarei breve para continuar a ler-te
Um abraço

Anónimo disse...

Palavras para que? Um texto Profundo, mas que no fundo tem a sua realidade. Um texto erotico cheio de desejo, e ao mesmo tempo um pouco de "Horror".
m texto paea se ler a qualquer hora, (nem que seja as 5 da manha).

Beijos, e muitos parabens desta tua colega de turma de filosofia Ana Cristina Freitas.

Anónimo disse...

Foi realmente para mim um bom momento de leitura. Adorei este texto Ana, e permite-me, dentro da minha ignorância literária, dizer-te que na minha opinião acho és um talento perdido nas tão bonitas ruas Portuenses. Parabéns. Continua assim. Anita

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