Deixa-me morder as mãos com a saliva da tinta a incendiar raivas e desdéns, sem deixar convalescer misericórdias sobre as palavras enlutadas de vento. Deixa-me ser a vela amotinada, sopro de vida do punho cerrado, braços levantados, a espuma do mar enverdecendo de bílis os cálculos humanos. Que posso valer ao mundo senão grito levantado e insolente, que serei senão blasfémia de toda a conformidade imposta, arqui-inimiga dos sorrisos plastificados chafurdando nas sodas e nos apelos cor-de-rosa? Solto-me de manipulações ideológicas, verborreias demagógicas, para ser a raiz o osso a carne os dentes que mordem e ferem, língua bifurcada apedrejada amaldiçoada. Sou estridência como sol a pino, nascendo nas entranhas do mundo, comendo das entranhas do mundo, defecando as entranhas do mundo.
Foi o mundo que me concretizou, me conquistou, levedou-me em beleza servida de licores amorosos. Nasci em rosto fechado de inocência atrás de portas e janelas que doíam de luz. Sem mãos capazes para a agarrar. Depois disso uma convulsão de anos estúpidos, a dissolver o que os olhos não sabiam ainda descodificar. Então uma nesga dessa luz apanhou-me como se uma teia desalinhada. Apanhada a monte entre o ontem e o que virá. Subi até onde o medo consentiu. Guardei sombras na algibeira que me tomavam os sonhos. E na escalada mais promissora revi o mundo, como quem é apunhalado de costas: volto-me a encarar a face da traição e escancaro-me entre a angústia e a maravilha.
Tenho duas bocas, a que diz e a que vê (*). Uma desenhada a ponto grito, outra a ponto desespero, rematadas ambas a ponto de exclamação.
(*) de Ana Maria Costa
José Alexandre Ramos